A rotina brincante como elemento fortalecedor de laços

No dia a dia da sala de aula, como professora testemunhei comportamentos diversos entre as crianças, muitos deles curiosos e até engraçados, porque fazem parte da visão de mundo e da maturidade em construção. Para os adultos, trata-se de uma situação incomum, porque lidam com um código de ética, com regras próprias, que destoa do mundo “de gente grande”, com outras vivências. Este é um relato de experiências que vivenciei em momentos distintos durante as aulas com as crianças dos grupos 6-A e 6-B, na Escola Ebenezer Gueiros, em Rio Doce. Nossa escola atende as comunidades da Ilha de Santana, McLaren e adjacências, constituídas, em sua maioria, de pessoas de baixa renda.
Vygotsky defende que o brincar de faz de conta é estruturante, pois, através dele, é possível perceber que a criança já é capaz de simbolizar, entrar em contato com regras e criar as próprias normas. Quando pega um palito de picolé e modifica sua utilidade nas brincadeiras, é possível perceber que é capaz de abstrair. Modificando o uso real do objeto e dando outro significado, a criança demonstra seu entendimento sobre as relações sociais, pois geralmente assume papéis de maior responsabilidade do que realmente tem e se transforma em médico, professore nos próprios pais:
A capacidade de lidar com representações que substituem o próprio real é o que possibilita o homem libertar-se do espaço e do tempo presentes, fazer relações mentais na ausência das próprias coisas, imaginar, fazer planos e ter intenções (Oliveira apud Vygotsky, 1995. p.35)
O brincar de faz de conta deve fazer parte do tempo pedagógico, pois contribui para o desenvolvimento cognitivo e a criatividade das crianças. Tizuko Kishimoto diz que, no brincar livre, predomina a ideia de que a criança tem saberes e que merece credibilidade, e orienta ainda que haja a setorização, ou seja, que os brinquedos do faz de conta estejam juntos e disponíveis para facilitar o aparecimento das temáticas, sem estabelecer distinção de gênero. Pensando nisso, a organização do ambiente é fundamental para propiciar esses momentos. Assim, meu primeiro passo foi reduzir a quantidade de mesas. Temos 22 alunos nos turnos da manhã e da tarde, respectivamente, e deixei nove mesas com cadeiras frente a frente, para que, quando quisessem sentar, ficassem bem próximos. Dessa forma, ampliei o espaço na sala e também criei os cantinhos de fantasia, leitura, brinquedos, jogos e material escolar.
Dentre as experiências vivenciadas, destaco:
Videogame – Henrique pegou tubos de cola colorida e um estojo para simular que estava brincando de videogame. Sozinho, rapidamente perdeu o interesse pelo que estava fazendo. Antes da minha intervenção, olhou ao redor e chamou um amigo para brincar com ele, que aceitou de pronto o convite. Os dois simularam uma competição que, no meio da jornada, se transformou em um jogo colaborativo. Eles estavam tentando atingir o mesmo alvo.
Festa – Na hora do recreio, algumas crianças preferem ficar brincando na sala. Neste dia, meninos e meninas montaram uma festa com mesa do bolo, mesas dos doces, lembrancinhas, mesas com copos, cadeiras para os convidados (os alunos do Grupo 5, que participaram da festa). A organização foi realizada em conjunto e com os elementos existentes na sala de aula: lápis de cera se transformaram em doces, peças de jogos viraram comidinha ou lembrancinhas, copos de um jogo foram harmoniosamente organizados. Foram momentos de interação e autonomia.
Sobrancelha – Mayza solicitou que Yasmin se sentasse em uma cadeira. Pegou um palito de picolé de um jogo e colocou várias vezes no rosto da amiga. Yasmin, sem entender direito o que estava acontecendo, demonstrou certo desconforto com aquele palito tão próximo dos olhos. Mesmo assim, deixou-se levar pela brincadeira. Questionei o que ela estava fazendo, ao que respondeu: “Design de sobrancelha”. Perguntei onde ela tinha visto aquilo e ela afirmou que sua mãe utilizava esse tipo de serviço.
Salão de beleza – As meninas iniciaram a brincadeira e, de forma espontânea, os meninos se integraram ao momento. Com cadeiras alinhadas, montaram um salão de beleza. Utilizaram materiais de brincar na areia para simular os equipamentos do salão. Ciscadores e pás eram pentes e máquinas de cortar cabelo, respectivamente; o palito de picolé, que servira para medir a sobrancelha na brincadeira anterior, nesse momento era a navalha para fazer os desenhos nas laterais da cabeça. Percebi que eles estavam suscetíveis ao toque, principalmente os meninos, que algumas vezes se utilizam da agressividade para suprir a necessidade do toque. Peguei um hidratante e sugeri que o salão ampliasse os serviços e oferecesse massagem nas mãos dos clientes. Solicitei que sentissem o agradável perfume nas mãos, a maciez da pele e, voluntariamente, eles envolveram todos os que estavam presentes na sala.
Vendedor de biscoitos – A capa vermelha já foi motivo de zombaria e discussão entre as crianças. “A capa é de menino ou de menina?”, perguntavam entre eles. Intervi: “Quais personagens usam capa?” Responderam: “Superman, Chapeuzinho Vermelho, vampiro”. Perguntei: “Então, qualquer pessoa pode usar?”. “Pode”, responderam. Em outro momento, Bernardo colocou a capa, pegou uma cestinha de palha, colocou objetos dentro e caminhou pela sala, oferecendo biscoitos de chocolate aos colegas. Certamente tendo como referência a história da menina do capuz vermelho.
O que une essas experiências é o fato de todas elas terem a parceria, o companheirismo e a vivência em grupo, para que o momento desse certo. Verifiquei, na rotina da sala de aula, que o brincar livre é um elemento estruturante para o desenvolvimento infantil, bem como as contribuições do brincar coletivamente para o fortalecimento dos vínculos afetivos, pois nenhum deles queria brincar sozinho. Pude observar entre as crianças um amadurecimento na resolução de conflitos, vínculos mais fortes entre os veteranos e novatos, meninos e meninas brincando juntos, mais liberdade nas brincadeiras sem a preocupação se é de menina ou de menino.
Independentemente de gênero, as afinidades entre as crianças afloram e criam oportunidade de vivências, trocas, amadurecimento e alegria, pois, como disse Paulo Freire: “A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca” (cito de memória). É isto o que quero proporcionar às crianças.
Esse tipo de brincadeira já acontecia, porém, o olhar atento e a escuta ativa no momento do brincar de faz de conta ficaram mais apurados após as capacitações do Paralapracá, que me proporcionaram uma ampliação nas possibilidades de aprendizagem, tendo a ludicidade como uma constante e a criança a protagonista.
Muito grata.


