Paralapracá em Teresina: com o respeito que a criança pequena merece
Teresina (PI) – Quando a gerente de educação infantil do município de Teresina, Giovanna Saraiva Bezerra Barbosa, entrou em uma das creches da rede e se deparou com crianças que, aos 3 anos, se esforçavam para desenhar os contornos da letra A, viu que algo estava fora do lugar. Era 2009, mas desde 2006, quando deixaram de ser atribuição da área de assistência social e passaram à responsabilidade da pasta da Educação, as escolas de educação infantil da cidade trilhavam um caminho focado exclusivamente na alfabetização. “Nossa expertise sempre fora alfabetizar, já a partir dos 5 anos. Nós vimos nessa transição uma oportunidade de acelerar ainda mais a alfabetização e nos apegamos a isso”, lembra Giovanna.
Mas havia sinais de que era preciso mudar: as escolas nem pareciam espaços da infância. Quase não existiam brinquedos. As produções infantis – bem como todos os objetos – eram penduradas bem alto, para que as crianças não rasgassem. Quando havia músicas e brincadeiras, serviam para reforçar o processo formal de letramento. “As crianças choravam muito, e nos intervalos era uma correria, só brincavam de dar tiros e coisas assim”, lembra Maria Francisca Ferreira do Nascimento, diretora da CMEI Roseana Maria Martins de Lima, para pontuar a falta de espaços de expressão infantil.
O processo vivido por Teresina é um exemplo de características que ainda marcam a história recente da educação infantil no Brasil. A ideia de uma educação de crianças pequenas que oscila entre a puericultura e expectativas do ensino formal também havia influenciado a capital piauiense e se mostrava evidente em todas as práticas, inclusive em aspectos administrativos. Não havia, por exemplo, possibilidade de adquirir brinquedos, que sequer constavam da lista de itens passíveis de compra pelo poder público. “Já papel tinha aos montes, pois era a principal demanda dos professores”, recorda Giovanna.
Foi então que, em meados de 2009, chegou à Secretaria de Educação um comunicado do Instituto C&A para que a cidade considerasse a hipótese de desenvolver o projeto Paralapracá, conjunto de ações do programa Educação Infantil com a finalidade de melhorar a qualidade do atendimento às crianças de 0 a 6 anos. “Quisemos participar do edital porque queríamos aproveitar todas as oportunidades. E com o Paralapracá começamos a perceber que o caminho que tínhamos optado seguir antes do projeto, se não era errado, também não era o melhor para as crianças”, lembra.
A importância da formação
Uma vez selecionada pelo Instituto C&A, como era previsto, Teresina incluiu parte de suas instituições de educação infantil no projeto. Em escala-piloto, estava tendo início ali uma transformação global e profunda na rede municipal teresinense. “Tudo se passou em 25 unidades, mas repercutiu em tudo o que fazemos. Foi uma mudança de paradigma que mexeu com nossas convicções, influindo na forma de pensar dos gestores, na formação dos professores, no planejamento, enfim, no projeto que queríamos construir para a educação infantil. Sem desmerecer o que havia sido feito anteriormente, queremos agora fazer a educação infantil com o respeito que a criança merece”, assinala a gestora.
A implantação do projeto Paralapracá começou com a formação, realizada pela ONG Avante Educação e Mobilização Social, de Salvador (BA), que atua como parceira técnica na iniciativa a convite do Instituto C&A. O trabalho foi realizado inicialmente com 25 coordenadoras pedagógicas, dentro dos seis eixos em torno dos quais se estrutura o projeto Paralapracá: brincadeira, música, arte, organização do ambiente, exploração do mundo e contação de histórias.
Mas como se apresenta para uma rede de educação infantil uma perspectiva tão diferente da que se habituou a trabalhar? “Com atitude de respeito e acolhimento”, explica a formadora Mônica Martins Samia, que coordena as ações relativas ao projeto Paralapracá na Avante.
Segundo conta Mônica, as prefeituras que integram o projeto estranham o fato de não ser oferecida uma formação direta para os professores. Isso acontece justamente porque a proposta do projeto Paralapracá enfatiza o papel do coordenador como formador – não como simples multiplicador, mas como um profissional que será impactado pela formação, assimilará conteúdos, desenvolverá atitudes e, então, será capaz de irradiar para a rede as novas propostas.
Em Teresina, onde existe a figura do supervisor pedagógico, este profissional foi também incluído no processo formativo, na busca de um alinhamento entre a sua visão e as transformações que passariam a acontecer na escola. E quantas transformações! A formação provocou uma atmosfera de encantamento, houve um cuidado especial para que se passasse do encanto à prática, mobilizando toda a comunidade escolar: professores, demais funcionários, crianças, famílias. Haja vista o que ocorreu quando chegaram às escolas as malas com os materiais pedagógicos do projeto Paralapracá.
“Foi uma alegria ver aquela mala recheada com coisas que enchem os olhos de qualquer um. A gente parecia criança. Cada livro, cada brinquedo, cada fantoche, cada material era uma descoberta. Nunca tínhamos recebido um material daquele. Era um sonho realizado”, lembra a coordenadora pedagógica Liana Gregória Moura Soares. “Todos nós ficamos ao redor da mala e disputávamos cada novidade”, retoma Maria Francisca, a diretora da CMEI Roseana Maria Martins de Lima.
O brincar assume seu papel
Com as crianças não foi diferente. Todo o ambiente escolar foi preparado e quando Marilene Evangelista, contadora de histórias da comunidade, entrou fantasiada de borboleta trazendo a mala, os olhos de todas elas se arregalaram – e também de seus pais, avós e outros familiares que estavam presentes.
A partir daí, um movimento de transformação tomou conta da escola, induzindo profundas e permanentes transformações. “Pode mudar o pedagogo, o professor, a gerente de educação, mas as mudanças do projeto Paralapracá vão ficar”, assegura a supervisora pedagógica Corina de Paula Lima Araújo.
As transformações se deram em todos os planos, a começar do planejamento pedagógico, que deixou de vir fechado da Secretaria de Educação de Teresina e passou a ser uma construção conjunta, com grande participação das professoras. “O projeto da escola passou a ser de todos, não só do pedagogo. Percebemos a importância de envolver todos os outros personagens da escola e de todos se reconhecerem naquilo que estavam fazendo”, diz a supervisora.
A sala de aula também mudou. “Até então, usávamos o brincar apenas para moldar o comportamento da criança. Contávamos histórias para que ela ficasse quieta. A música era para passar o tempo na fila. Hoje, histórias, arte, música e brincadeira estão integradas ao processo de aprendizagem e fazem parte da vida da criança na escola”, resume a professora Antônia Clene Lima da Silva. “Se antes olhávamos apenas para os conteúdos, hoje contemplamos as outras habilidades da criança”, completa a docente Clemilda Araújo Carvalho Bento. “Se a criança queria falar algo, dizíamos que não era hora. Hoje, ela se expressa, brinca, conversa com os colegas – e aprende”, reforça.
“As crianças passaram a se expressar desenhando, cantando, falando, brincando. A música foi para a fila do lanche, para todos os espaços; começamos a contar histórias em todos os espaços, participando, criando. A brincadeira passou a ser levada a sério em nossas escolas”, retoma a supervisora Corina. “Se antes os livros eram guardados na estante e apenas os professores podiam pegá-los, com o projeto Paralapracá eles passaram a ser algo pertinente à criança”, diz.
Projeto ganha os espaços
Como um princípio que reconsidera o espaço e o tempo, a chegada do projeto Paralapracá surtiu efeito na reorganização do ambiente escolar. Nas escolas de Teresina, surgiram livros gigantes, áreas de contação de histórias, parques infantis feitos de modo inventivo, a partir dos mais diversos materiais. Um dia, os compradores da prefeitura se surpreenderam, por exemplo, com a requisição de pneus. Mas por pouco tempo: logo viram os pneus serem coloridos e se transformarem nos mais diferentes brinquedos espalhados pelo gramado das escolas.
O envolvimento da comunidade, outro pré-requisito da metodologia que suporta o projeto, trouxe uma vitalidade criativa às transformações do espaço físico. Na Escola Roseana de Lima, os funcionários se envolveram na construção de uma casa permanentemente instalada no pátio para a contação de histórias e o teatro infantil. Soluções inimagináveis surgiram para os contextos locais. Na própria CMEI Roseana Maria Martins de Lima, por exemplo, o porteiro criou uma cobertura para o balanço infantil, que se aquecia demais sob o sol do Piauí – e viu sua criação ser batizada como Balanço do Tio José.
Mas a mais surpreendente das histórias de transformação foi vivida no Centro Municipal de Educação Infantil Jofre Castelo Branco. Lá, como o prédio não foi construído para abrigar uma escola de educação infantil, sequer havia pátio para as crianças – uma única pequena área quadrada servia para os pais esperarem os filhos. Com a chegada do projeto Paralapracá, a demanda por um ambiente lúdico cresceu ainda mais.
Foi quando o marido da diretora Izabel Souza Oliveira, um bombeiro aposentado, teve a ideia de pedir mangueiras, ganchos e outros materiais de interesse dos bombeiros que estavam em desuso, para improvisar um parque suspenso e móvel, que pode ser instalado e desinstalado em poucos minutos. Primeiro, surgiu um balanço, depois escadas e aos poucos uma dezena de opções de brinquedo, chamando tamanha atenção que até os adolescentes da escola vizinha passaram a vir buscar os irmãos mais cedo para brincar no local. A “tecnologia”começou a ser exportada para outras escolas espontaneamente, enchendo Izabel de orgulho.
Beleza que se põe à mesa
Na base das mudanças está o envolvimento das forças das comunidades e das famílias. Diferentes pessoas, riquezas da comunidade, foram atraídas para a escola. “Esta foi uma das propostas do projeto: encontrar agentes da comunidade que ajudassem na mudança de postura em favor da qualificação do ensino. A própria orquestra da cidade se abriu. Contadores de histórias, artistas… foi uma caça ao tesouro”, diz Janaína Gomes Viaba, assessora pedagógica do projeto Paralapracá.
O impacto do projeto Paralapracá ultrapassou os limites da escola e chegou às famílias. Que o diga Marlene Vieira, mãe de Letícia, de 6 anos, e de David, de 4 anos, que um dia se assustou quando sua filha lhe pediu que servisse a comida à mesa e não diretamente das panelas, como de costume. “É assim que se faz na minha escola e todos ficamos juntos”, explicou Letícia, que levava para casa o estímulo à autonomia em todos os momentos, inclusive na hora de se servir de alimentos.
E, assim, logo também veio a demanda por músicas, e surgiram as histórias. “Isso mudou em 100% a relação com meus filhos”, reconhece Marlene. O tempo de convívio da família, à noite, tornou-se um tempo rico de troca de afeto, conhecimento e de histórias. “Eles passaram a me contar histórias e a me cobrar de ouvi-las com atenção, pediram para que eu visse seus trabalhos na porta da sala””, comenta.
Marlene conversa muito com os outros pais e deles ouviu os mesmos relatos. “O dia a dia da rotina do pai e da mãe é trabalhar para comprar as necessidades, alimentação, e muitas vezes nos esquecemos do principal: o carinho, a convivência. Hoje chego, vou brincar com eles, quero saber o que aconteceu”, conta.
Mas, para Marlene, a principal mudança se expressa no rosto das crianças. “Elas estão mesmo mais felizes”, diz. E aprendem? A resposta vem de quem acompanha o trabalho tecnicamente. “Sim, aprendem tudo o que não aprendiam antes, desenvolvem-se em todos os campos e, na escrita, até mesmo mais do que antes”, assegura a educadora Giovanna. Uma experiência linda de se ver.
Fonte: Instituto C&A
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